O OLHAR DE SÃO CRISTÓVÃO São Cristóvão repousa no alto de uma colina, quieta, aparentemente inabitada, neste meio dia de sol quente e um ...
O OLHAR DE SÃO CRISTÓVÃO
São Cristóvão repousa no alto de uma colina, quieta, aparentemente inabitada, neste meio dia de sol quente e um céu azul de doer a vista. Na praça do mosteiro, pisando nas pedras do calçamento antigo, tudo é uma só labareda do passado, um conjunto arquitetônico impressionante, um pouco da nossa história e um orgulho adormecido que, a princípio, boceja sonolento, mas que pula no peito, assim, de repente, e enche os olhos d’água. São Cristóvão, eu não sabia, é a quarta cidade mais antiga do Brasil, distante alguns quilômetros de Aracaju, atual capital do estado. Tudo nela grita os tempos de Sergipe d’el Rey, uma dignidade clara, de janelas azuis e paredes grossas, testemunhas do Brasil colônia, com os campanários do século XVII recortados contra um céu imóvel, como se Deus tivesse emborcado uma xícara de finíssima porcelana azul sobre a terra.
Mas a história não é essa. Na verdade, confesso minha ignorância, eu não sabia da existência e da importância de São Cristóvão, de seu belíssimo museu de arte sacra, de sua história preservada no coração de Sergipe. Muito provavelmente, eu teria ido me apresentar em Aracaju sem visitá-la, não fosse por Jacira e sua vontade de fazer o caminho de volta, porque esse desejo está no coração de todos os seres do planeta – mais cedo ou mais tarde, temos que percorrer o caminho de volta, seja prá onde for.
Jacira trabalha comigo há três anos, mais ou menos. Foi trazida por Maria que era colega dela na escola noturna e que, finalmente, cedeu as minhas pressões para que tivesse alguém que a ajudasse. Jacira é pequena, os cabelos na altura dos ombros e uma alegria digna de nota. Quando estamos todos na copa, depois do almoço, tecendo comentários sobre a vida em geral, sexo inclusive, ela está sempre às gargalhadas e ri de não se agüentar nas pernas, desaparecendo de nosso campo de visão, quando se agacha num ataque prolongado de riso, a mão sobre a boca, murmurando o seu bordão: Miguel é triste!
Pois numa dessas conversas, ela me contou que era de São Cristóvão, Sergipe, que tinha vindo tentar a sorte no Rio, há dezenove anos atrás, ainda menina, apavorada com a perspectiva de uma vida no Rio de Janeiro, parada na estrada, à espera do ônibus, a certidão de nascimento roubada na calada da noite, porque não queriam que ela fosse embora. Jacira veio e nunca mais voltou. A vida difícil a impediu, é claro, mas alguma coisa dentro dela (que ela nem sabia explicar o que era) segurava seus passos e atravancava o caminho de volta. Daí que resolvi levá-la comigo, aproveitando a turnê da peça e, para não criar ciúmes, acabei resolvendo levar todo mundo, porque afinal de contas somos mesmo uma família e Jacira, Maria e Neide ( juntamente com Carlos Alberto e seu Hélio) alicerçam meus dias e meu trabalho. Juntamos as trouxas e seguimos viagem, um grupo ruidoso e, no mínimo, engraçado.
Chegamos a São Cristóvão no fim da manhã e, como disse antes, a cidade parecia adormecida, presa no encanto dos tempos. Eu me virava no banco da frente, roubando um pouco da emoção do olhar que ela lançava para fora da janela do carro, reconhecendo o seu lugar. Na praça principal, antes de entrar no museu, fomos “descobertos” por um grupo de crianças que saíam da escola e, em questão de minutos, aquilo virou uma loucura, uma algazarra inacreditável que, para meu constrangimento, parecia acordar os mortos que dormiam em paz sob as campas da igreja. Refugiei-me numa sala do museu, porque percebi que ela estava nervosa, que todo aquele tumulto ia acabar quebrando a magia do reencontro, de modo que resolvemos deixá-la logo em casa e, depois, conhecer a cidade.
E fomos seguindo pelas ruas estreitas, com um bando de crianças pulando atrás do carro, crianças como ela foi um dia, eu podia ver nos seus olhos, a saudade, a constatação de uma realidade sofrida que ela não pediu, que ela nunca entendeu, que a obrigou a partir e ela, num fio de voz, disse, encolhida no banco de trás, com um olhar novo de quem viu o mundo para além do seu quintal.
- Meu Deus! É tudo tão pequeno!
No alto da ladeira, ela desceu do carro e tiramos as coisas do porta-malas, presentes para a família, a bolsa de viagem arrumada com carinho. Eu perguntei se ela queria que eu entrasse para cumprimentar a família, mas ela disse que não, de modo que ficamos ali, vendo ela descer a ladeira, enquanto os vizinhos corriam para os portões. Ela parou na entrada da casa do irmão e acenou para nós. Depois, apertou os olhos e exclamou, quase um grito de ave reunida ao bando, depois de quilômetros de vôo sem rumo.
- Meu pai ‘tá tão velhinho!
E deixamos ela lá, para o final de semana, partindo em silêncio, cada um de nós com saudade das coisas amadas que deixamos para trás. Ninguém disse nada, ninguém queria dizer nada. No convento das monjas beneditinas, refugiados na sombra fresca das paredes da igreja, nós nos olhamos com carinho. Aquele foi um dia feliz, eu pensei. E acho que todos concordaram comigo, no silêncio da prece.
Fonte: http://www.miguelfalabella.com.br/cronicas/index.html
Belíssima crônica Miguel Falabella São Cristóvão é a cidade mãe da capital de Sergipe e vc com sua sensibilidade poética nesse monólogo nostálgico descreve muito bem a nossa quarta cidade mais antiga do Brasil que dorme em berço esplêndido o seu sono mais profundo esperando acordar com os encantos de quem as visita. "Reall Mariow" funcionário público e poeta.
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