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José Narbone: um judeu argelino em Sergipe, século XIX
Historiador Amâncio Cardoso revela como viveu um personagem singularPor Amâncio Cardoso(*)
Relativamente poucos estrangeiros fixaram moradia em Sergipe no século XIX. A província possuía menor atratividade econômica se comparada, por exemplo, com a Bahia ou Pernambuco. Mesmo assim, encontramos nos oitocentos imigrantes que aqui assentaram negócios e firmaram residência. Um deles foi José Narbone.[1]
Nascido em 1811 na cidade de Argel (Argélia), norte da África, Narbone chegou ao Brasil, pelo Rio de Janeiro, em 1840.[2] Em Sergipe, ele aportou na cidade de São Cristóvão em 1842.[3] Na antiga capital sergipana, o argelino passou a morar na casa número 05, na rua da Matriz, onde viveu como “negociante”.[4]
Narbone era de etnia hebraica. Porém, em termos de crença religiosa, ele se convertera ao protestantismo. Pois seu necrológio afirma, enfaticamente, que ele era “protestante”, mas sem declarar de qual denominação.[5] Porém, sua ascendência foi veiculada por várias fontes, confundindo origem étnica com religiosidade mosaica.
Neste sentido, o Correio Mercantil, jornal da Corte, por exemplo, noticiando sua ajuda aos pobres numa comissão durante a epidemia de cólera de 1855, o classificou, com certo ranço preconceituoso, de “Judeu caridoso”, e também de “um homem da religião de Moisés”.[6]
Já o Correio Sergipense, o denominou de “israelita”, que se refere tanto a quem pratica a religião judaica quanto aos descendentes de Jacó.[7]
Quanto ao Imperador D. Pedro II (1825-1891), que conheceu Narbone pessoalmente, o identificou como “argelino judeu”.[8] E numa relação de estrangeiros que viajavam num vapor da Bahia a Sergipe, ele foi registrado como “Hebreu”.[9]
Por fim, na sua certidão de óbito, de 1876, consta que o argelino foi enterrado numa área do cemitério de Aracaju para “acatólicos”, como soe ocorria quando o falecido não professava religião católica; o que seria o caso do negociante judeu-protestante.[10]
A partir de 1848, José Narbone intensificou suas viagens a Salvador-BA, para tratar de negócios. Ele também era agente representante da Companhia Santa Cruz de Paquetes a Vapor, sediada na capital baiana, que fazia o transporte de passageiros e mercadorias entre a Bahia e os portos de Sergipe.[11]
Sobre o estabelecimento de Narbone em Sergipe, há fortes indícios de que ele veio morar em São Cristóvão para representar a Companhia Santa Cruz, cujo diretor era o empresário baiano comendador Antonio Pedroso d’Albuquerque.[12]
Aqui na província, o agente Narbone teve participação efetiva durante a mudança da capital de Sergipe, de São Cristóvão para Aracaju, em 1855. Ele vendeu passagens no vapor Santa Cruz aos empregados provinciais que vieram da antiga para a nova capital. Bem como enviou, na mesma embarcação, a mobília do Palácio e da Secretaria da Presidência da Província, e seus respectivos funcionários.[13] Além disso, o argelino também transportou os livros e mobília da Biblioteca Provincial que veio de São Cristóvão para Aracaju.[14]
Além de sua participação na mudança da capital, Narbone também foi protagonista noutro episódio marcante na história nosológica de Sergipe. No segundo semestre de 1855, a epidemia de cólera grassou na província. O município de São Cristóvão, dentre outros, foi atingido. Então, José Narbone foi escolhido comissário do governo provincial para intermediar despesas com alimentos, medicamentos, doentes e mortos. Ele “fez mui importantes e valiosos serviços” e foi “sempre dedicado e humano”, relatou o Barão de Maruim (1809-1890), vice-presidente que administrou a província durante a calamidade.[15]
A bem da verdade, José Narbone foi um dos que mais se desdobraram nos serviços da Comissão de Socorro aos coléricos, através de um ponto sanitário - hospital improvisado nos salões do Convento do Carmo. Para levantar recursos em favor dos pacientes desvalidos, Narbone e demais membros da Comissão andaram “de porta em porta com uma bolsa a esmolar”. O dinheiro recolhido foi aplicado no levantamento e manutenção do ponto sanitário.[16]
Na função de comissário do governo provincial, o imigrante além de ajudar os enfermos de São Cristóvão e da Aldeia de Água Azeda[17], também distribuiu alimentos, tais como farinhas de mandioca e de trigo; carne; arroz; bolacha; além de lençóis de algodão, de baeta e roupas.[18]
Por conta disso e por “carregar doentes em seus ombros”, um certo “Imparcial de São Cristóvão” escreveu nota no jornal elogiando o argelino de “estrangeiro benemérito”, por sua “incansável” luta contra a epidemia.[19]
Ademais, ele foi distinguido entre os membros da Comissão de Socorro Público de São Cristóvão por fazer do hospital “quase sua morada”, abrindo “sua bolsa largamente à caridade”.[20] Outra contribuição de Narbone durante a quadra colérica foi emprestar dinheiro ao governo, sem juros, para enterramento das vítimas fatais da antiga capital.[21]
Três anos após o surto epidêmico, José Narbone ganhou o título de Oficial da Ordem da Rosa do governo imperial, pelo reconhecimento de suas ações contra o cólera.[22] A benevolência do argelino foi mais uma vez colocada em prática em 1872, quando ele participou do grupo que fundou em Aracaju a Loja Maçônica Cotinguiba, cujas atividades incluíam práticas filantrópicas.[23]
Em junho de 1856, o judeu saiu de São Cristóvão e passou a morar, investir e negociar em Aracaju.[24] Ele foi um dos primeiros investidores na construção e aluguel de imóveis na então recente capital, acreditando no crescimento imobiliário da nova urbe.[25] Aliás, seu propósito foi acertado. Pois, depois de vinte anos residindo na capital, o negociante acumulou 16 (dezesseis) casas: sete na rua da Aurora (atual rua da Frente), cinco na rua de São Cristóvão; duas na rua de Laranjeiras e duas na rua Japaratuba (atual João Pessoa).
Todas as casas de Narbone estavam localizadas na área projetada, ou quadrante Pirro, onde os imóveis adquiriam maior valor locativo. Dentre esses bens, no ano de 1876, dez estavam alugados; dois “em obra”; um “arruinado”; um “fechado”; um ocupado pelo proprietário e outro “dado a morar a Felippa Maria da Conceição”, sua segunda consorte.[26]
Em 1872, o argelino judeu ainda tentou construir um trapiche na rua da Aurora. Contudo, um grupo de moradores denominado “os Verdadeiros Sergipanos” reclamou à Câmara Municipal que negasse a petição de Narbone para levantar o trapiche em frente a uma de suas residências na Aurora. Eles alegavam que a obra prejudicaria a estética da via; o que já ocorria, por exemplo, com “um trambolho chamado trapiche Chagas, que muito a desfeia (sic) e tira-lhe grande parte da vista”.[27] O pedido dos moradores foi acatado. Ainda hoje, a Aurora (atual rua da Frente) é uma das mais belas avenidas da capital.
Em janeiro de 1860, durante a visita de Suas Majestades Imperiais, Narbone se fez presente como membro da comissão para a recepção dos augustos visitantes. Essa comissão era composta “pelos mais ricos proprietários e negociantes da província”. Neste sentido, o argelino doou 1:000$000 (um conto de réis). Oferta considerável para um estrangeiro estabelecido em Sergipe.[28] Só por comparação, a empresa alemã A. Scharamm & Cia., a mais sólida casa comercial na província, doou à dita comissão a metade do valor concedido por José Narbone.[29]
Ele também participou da cerimônia do beija-mão do Imperador D. Pedro II, como vice-cônsul do Uruguai e da França em Sergipe.[30] Rendendo homenagens aos ilustres visitantes, o negociante argelino se ofereceu “para servir de porta-bandeira na guarda do Paço, e aí permaneceu no seu posto de honra”. O gesto “espontâneo” foi considerado uma “prova de afeto” do imigrante ao soberano do país que o acolheu.[31]
Devido à disposição e generosidade durante a recepção de Suas Majestades, Narbone foi agraciado com o título de Comendador da Ordem da Rosa, adquirindo mais um grau depois do Oficialato.[32]
Sendo um empresário do seu tempo, o judeu possuía mão de obra escravizada. Mesmo com olhos “demasiadamente espertos”, como registrou o Imperador ao conhecê-lo, Narbone não foi suficientemente sagaz para evitar a fuga de alguns escravos. Assim, quando ele ainda morava em São Cristóvão escaparam-lhe os cativos Manoel (16 anos), fugiu em 1848; Tertuliano (30 anos) e João (28 anos), em julho e novembro de 1849 respectivamente; outro Manoel (42 anos), em maio de 1853. E quando o comendador passou a morar em Aracaju, fugiram-lhe Carlos e Antônio, em dezembro de 1858.[33]
Mas houve um de seus cativos que se manteve prestando-lhe serviço durante pouco mais de uma década. Foi Evaristo, seu “escravo de ganho”. Talvez, por sua relativa autonomia de transitar pelas ruas, Evaristo tivesse mais condições de se manter distante da tutela, ou do olhar “demasiadamente esperto” de Narbone.[34]
Viúvo do primeiro casamento, mas mantendo segundo vínculo conjugal com Felippa Maria da Conceição, Narbone deixou expressivo patrimônio para os herdeiros: Fortunata Narbone; Rachel Esther Narbone; Maria Narbone; Anna Narbone; Clara Esther Narbone[35] e Luís Napoleão Narbone.[36]
Bastante adoentado, “há longos meses prostrado no leito da dor”, sob o peso dos 65 anos de idade, o judeu argelino faleceu no dia 27 de outubro de 1876; e foi sepultado “na tarde de 28”, quatro meses depois de fazer seu inventário.[37] Ele sofria do que se denominava à época de “anasarca” - inchação geral no corpo ou hidropisia do tecido celular.[38]
José Narbone (1911-1876) residiu em Sergipe por “mais de 30 anos”. Apesar de viver numa província de poucos recursos, ele foi um homem próspero. Chegou jovem ao Brasil; trabalhou no comércio, como soe ocorrer com um judeu imigrante; levantou considerável patrimônio; conquistou títulos; fez parte de uma elite socioeconômica; de etnia hebraica, mas adotou o protestantismo; foi maçom, prestando serviços filantrópicos; “sempre considerado por suas boas qualidades e por seu caráter sincero”, conforme seu necrológio; foi um dos protagonistas para o sucesso da nova capital de Sergipe; conheceu duas mulheres, constituindo uma grande família.[39] Certamente, foi um homem feliz.
Enfim, por mais de três décadas, a interessante saga deste singular argelino esteve umbilicalmente ligada a Sergipe.
Amâncio Cardoso é professor de História, IFS-Campus Aracaju
Fonte: F5 News
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